sábado, 22 de agosto de 2020

Eu morri na quarentena pandêmica

No início da quarentena eu pensei que morreria. Ainda sei que posso morrer. Temia gente próxima falecer e algumas faleceram. O discurso de arreganhamento do demônio me deu mais certeza do fim. Só caiu a ficha que eu poderia morrer, quando tive que ir na UPA de Cruz das Armas e no salão frontal de portas de vidro aquele espaço fazia a vez uma vitrine macabra da morte expondo dois pacientes todos envelopados de branco e se poderia bem afixar uma placa: “Nós que aqui estamos esperando por vós!” Eu fui morrendo na quarentena. Morri para alguns falsos valores. 

Despedi-me de mim algumas vezes. Estava dentro do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Por Direitos repleto de dilemas de higiene e cuidados, pois estávamos visitando comunidades vulneráveis. Descuidos com uso de máscaras, EPI’s mal utilizados, não utilizados ou inadequados e desinfeccionamentos precários.

 Passeei no centro de João Pessoa, num dia de semana, em hora que seria de pleno pico e me lembrava da imagem do Papa caminhando em Roma só. A cidade era um luto ou pré-luto evaziada de vida, de esperança. A rua era um esquife gigante. 

Sublimei todos esses aspectos horripilantes e decidi que não queria estar em outro lugar que não fosse perto daquelas pessoas que eu tentava cuidar nas franjas da Grande João Pessoa. Eu cuidava de mim. Estava e estou entendendo a despedida do mundo. No final, sempre estamos despedindo da vida, só que a pandemia e o demônio que nos atormenta desde 2015 deram mais sabor de fim inexorável e inevitável. 

Como saber que antes de você morrer narciseamente, morre o outro lado não egoico. Eis-me cá vivo, sempre morrendo, sempre sendo otimista e sempre morto dentro de mim. As consequências de ser um fantasma com corpo é que você pode agir como vivo. Só que as regras caíram. 

Estava em em março de 2020, dia sim dia não, indo nadar nas águas da praia do Bessa. Um dia uma caravela queimou minhas pernas e não morri. Um dia vi seres estranhos, era a corda de uma ancora. Um dia ouvi uma revoada de pássaros e antes de meu cu apertar cortando vergalhão era um cardume que saltava. Eu tenho muito medo dos seres marinhos desconhecidos. 



Enquanto eu morria afetivamente, politicamente e psiquicamente, faleciam milhares de pessoas e não era somente possível a minha morte como era também provável e ainda é. Minhas decisões não estão muito pautadas nesse futuro e nas minhas hipocrisias. Tento viver até meus erros de verdade. Hoje acordei e falei, já cometi erros e falhas tão grandes que poderia fazer uma classificação de nível 1 a 10, sendo 1 o grau de pior arrependimento. Nessas reflexões atoladas nesse poço de mim mesmo, ensimesmado, tal classificação só serviria para meu bom exercício de centrar em mim mesmo.

 No final dessa reflexão surge este texto. Seguramente, para muitos que se foram sem se despedirem e na angustia de obter ar, falecendo de asfixia ou de outra moléstia do corpo afetada por esse vírus, eu declaro que todos nós morremos. Carrego a carcaça sã como todos e todas vivas, mas a insanidade da ausência completa de empatia, não somente deste governo, de toda ordem capitalista que é incapaz de acudir a humanidade, inclusive na garantia de funerais dignos, ainda se afeta. 

Minha carcaça ainda se revolta. Nossa morte existencial que começa quando nascemos se encontrou com a morte conjectural. Resulta que nada é tão ruim ou bom quanto imaginamos. Estarei vivo e morto para garantia que meus erros sejam devidamente cometidos e para garantir que alguns acertos comprovem que fui muito esmerado em não ser o melhor Antônio possível e nem o melhor Antonio de mim. 

A condição dessa morte me joga direto para o despojamento, para o minimalismo e para o desacumulo. Cresceu a intolerância a quem tem prisão de ventre mental, que param dentro de si achando que terão outra vida e outro momento para viver. 



Minha persistência em viver é tão gigante quanto meu esmero em estar morto. Por isso, as pequenas injunções políticas, os limites “do pode não pode”, as decisões do idiota se aperfeiçoar em ser mais idiota e da pessoa acreditar que é invulnerável me faz por um lado rir e por outro chorar, já que o sentido da autoproteção nem sempre é o outro, talvez nunca seja. 

Uma amiga me pediu para eu me cuidar! Descuidarei-me como sempre!Hoje irei ao mar do Bessa temer monstros marinhos!