Anarquismo x não anarquismo?*
A Netflix traz produções de outros países e que ainda eivadas
de americanismos que podem oferecer ora uma visão local, ora uma visão universal.
Separei 4 produções que me fazem
raciocinar que possuem uma coisa em comum, a escola, a educação, a sociologia
da educação e os sujeitos desse processo, pais, mães, estudantes, entorno
social, códigos sociais e doenças sociais.
Merlí é uma produção da Catalunha
que possui ares de Sociedade dos Poetas mortos, mas ao fim e ao cabo é
autoritário numa escola autoritária, com estudantes com valores morais
confusos, narcisistas e pouco afeitos a qualquer colaboração cooperativa,
também jovens autoritários. A libido de Merlí provoca uma mistura de asco e de
admiração por oscilar entre a franqueza e a trapaça. Ao fim ocorrem superações
como numa malhação ou filmes de sessão da tarde. As rupturas são conservadoras.
O sistema educacional da Espanha é um misto publico e privado, mas o ambiente é
de classe media com algumas pessoas de baixa renda, muito mais deslocados
socialmente do que financeiramente. Merlí é considerado anarquista, mas não é!
Rita é uma produção Dinamarquesa
com ares mais reais, fracassos como filme de Building (formação/superação). Ela
fracassa com os filhos, com a vida afetiva, com algumas situações, mas é sempre
combativa num ambiente hipócrita como na Catalunha. Um sentido de justiça que
se faz a partir das falhas dos outros e de regulamentos que não se encaixam com
a realidade. Todo ato dela é heroico e anti-heróico. A presença constante de um
cigarro na mão e uma libido muito liberal e sem culpa é algo notável. A escola
é um paraíso no que se sugere ao conceito de disciplina. Parece uma grande
comunidade pacífica. Parece uma série para uma classe média resolvida da
Dinamarca em que os problemas escolares são quase pitorescos e pontuais.
Tachada como anarquista faz o filho desistir de ser punk no exato momento que o
pai divorciado o faz perceber que sua mãe é o retrato da maior rebeldia que ele
poderá alcançar. Rita quer uma escola justa, melhor e superar as crises
econômicas, as reformas educacionais, as formações e reciclagens inúteis que
são desagradáveis para uma professora do Condado em Pernambuco ou de outra na
Dinamarca. Aliás, dizem que na Finlândia esse papo de reciclagem morreu há 10
anos, pois a formação de base forte e robusta tornou desnecessária com a obrigação
e todos os professores terem mestrado. Rita não é anarquista, embora tenha ar
de progressista, tanto Rita quanto Merlí são auleiros estimulantes. O
preconceito, fofoca, puxadas de tapetes com certe elegância na Dinamarca e mais
escrachado na Catalunha dão o tom de sistemas de pouca liberdade.
A série “13 Reason why....” (EUA) migrou de apologia
ao suicídio à prevenção de vidas e cada um que escolha. Todas essas escolas possuem
o padrão valentão, sabido de informática, o atleta, o desprezado e as tribos
excludentes e auto excludentes. Neste sentido a sociologia narcisista da Catalunha
é até amorosa perto da escola estadunidense. Igualmente a Rita Merlí e
Why...filhos únicos, pais egoístas e profundamente centrados na
superficialidades que esses filhos cultivam sobre a vida. O fato de aqui o
bulling e o suicídio estarem diretamente associados, quando isso nem é regra
geral para definir o drama e nem explicar que o suicida jovem precisaria de
bulling para cometer suicídio. A sociologia dessas escolas é de uma imposição e
sociabilidade sem compaixão, forçada, sem verdade, hedonismo em medida tamanha
que só esconde uma baixa autoestima generalizada. Por que se matar é quase uma
revelação de que na escola estadunidense todos são suicidas sobreviventes.
O extraordinário (EUA) difere de
todos esses no enfrentamento da sociologia escolar. A família possui elos
afetivos mais nítidos e o medo do bulling é quase preventivo decorrente da
estética do protagonista mirim. Ele é uma superação num sentido de romance de
building, mas contém um elemento político que os demais filmes de escolas e
educação não possuem. A criança não supera o bulling por razão e professores
heroicos, por superações e valentia pessoal. Neste filme sem propósito
anarquista acaba sendo o mais anarquista quando o diretor é obrigado a
penalizar os pais provocadores da situação de preconceito nos filho. O filho
que gerou bulling é teleguiado por pais ardilosos. Esse aspecto é até revelado
em alguns desses filmes e seriados. Há até arrependimentos tardios. No entanto,
chama-me a atenção para o fato de que o diretor se respalda na Lei de proteção
à infância, sem bravatas é a política pública que protege o indivíduo da
agressão social. Não se pode ter uma sociedade pautada em heroísmos e esforços
individuais, mas pautados em normas, regras e ações concretas que independe da
moral do sujeito. Não se pode ter bulling por regra e não por demanda. A
política pública contra a tirania e não o indivíduo se defendendo da sociedade
tirana.
* É sempre bom lembrar que o anarquismo não rege sobre falta de regras, mas sobre regras que não fazem falta. Uma sociedade sem hierarquia é socialista e o socialismo não age na lógica de que a minha liberdade termina aonde começa a do outro (esse é um pressuposto liberal burguês), mas a minha liberdade começa quando eu ampliar a liberdade do outro.
Trocando em miúdos nas sociedades socialistas a auto-repressão é um exercício de ampliar liberdades e não delimitá-las. E dai que se confunde que a anarquia é ausência de poder. Anarquia é ausência de chefes, intermediários, escravos e da submissão e de submeter outros. Por isso a autonomia do sujeito, antes da revolução, processo antes da ruptura.