Em 1991 vivi numa comunidade de ativistas políticos de esquerda no Sul da França chamada Cooperativa Europeia Longo Mai (https://www.prolongomaif.ch). Por um período de 1 ano e 6 meses. Parte desse tempo vivi no Departamento de Ardeche, numa cidade em ruínas e com pouco mais de 3 famílias.
Sempre há erros de português e concordância, com o tempo revisito este texto e corrijo.
Fui inicialmente para realizar um transporte a pé por 25 km com um rebanho de ovelhas da raça rustica Brebie.
Cheguei no redil (bergerie) onde o rebanho ficava e tive contato com a neve pela 1a vez. Minha experiencia com neve foi com uma bota inadequada e jamais sofri tanto com os frios nos pés. Isso se aprende logo em país frio, que ter roupas e calçados adequados não são tolices da mamãe.
Uma parte de ovelhas de mais de 13 anos estavam aflitas para partir para a viagem. O nome desse transporte é transhumance ou transumância em português. Essas ovelhas mais velhas lembrando anos anteriores puxavam o grupo para anos anteriores.
Tivemos que resgatar esse grupo que precocemente queria partir e no dia seguinte partiríamos. Um rapaz holandês emprestou iria emprestar a cadela pastoral dela. No trajeto de 25 km iriamos três pastores. Eu ia na frente guiando e outros dois pastores iam tangenciando. As ovelhas pastavam e caminhavam a 3km/h e sabemos que o ser humano anda 5 km/h. Andar reduzindo o passo é mais cansativo. Outro pastor ia dando suporte afinal demoraríamos 3 dias para fazer o percurso.
Eram 80 avelhas e um carneiro que ia cruzando com o rebanho. Supunha-se que até o final da transumância todo o rebanho estaria fecundado.
Este caminho percorremos por uma França de interior, como eles chamava La Profond France. Parte desse caminho era muito rustico e na minha compreensão bem medieval. Cruzávamos com camponeses e suas casas como sítios do Brasil, galinhas entrando na cozinha. A impressão era de pobreza e atraso, pois eu ainda era eivado de falsas percepções e compreensões.
Passávamos por "drailles" que são caminhos antigos em um período que na França se transportava rebanhos e se queria impedir evadissem para comer as lavouras.
Os drailles tinha idades que remontavam a ocupação romana e aquele vislumbrar do desconhecido do período pré-idade média já era um espetáculo. Nessa caminhada me deparei com uma estrada de pedras em ruínas do período do domínio romano.
Partimos de Espezone que ficava a mais de 1000 metros de altitude com neve e iríamos para uma fazenda abandonada que havia sido produtora de seda, onde ficaríamos por 4 meses esperando as ovelhas se protegerem do frio e gestarem as ovelhinhas que nascem com 152 dias após a fecundação.
A transumância é cansativa, mas eu tinha 23 anos e tudo isso era um choque de vida, de aprendizado e de desafios emocionais, intelectuais e políticos.
No final do dia montávamos uma cerca elétrica e prendíamos o rebanho de noite e dormíamos na casa de algum amigo da região que estávamos.
Era uma mistura de dias brutos ao vento e a dureza de um transporte com risco e de noite na casa de educados e gentis franceses de esquerda que para mim tinham tudo de burgues menos a consciência.
Isso sempre me chamava atenção na França, ter grana não era sinônimo de ser cuzão. Não ter grana não significava ser ignorante político. Eu ainda vivia o binômio do esquerdismo de que se a pessoa tem grana é de direita! Quebrar esses preconceitos e essa visão foi um exercício tolo, mas necessário.
Nessas estadias, uma comida foi feita na panela de pressão e foi colocada para fora da janela para esfriar. Afinal o frio era maior que de geladeira no Brasil. Tudo era engraçado, inesperado e chocava-se com as coisas que eu tinha conhecido.
Eu usava muitas roupas, cachecol, toca e luvas, inclusive o suéter de lã que minha mãe havia tricotado em 1985. Ainda as possuo.
Foto
Incrível o que se aprende e se pode viver em 4 ou 5 dias de vida. o penúltimo dia mais cansativo de todos os 3 da tarefa dormimos num galpão com palhas.
Dormir num galpão de palhas de trigo, cevada, aveia ou centeio e estar naquela pegada rustica me fazia perguntar sobre aqueles transportes de gado do Brasil, tropeiros e essas coisas. Falava comigo, vim de longe para sentir coisas que acontecem no Brasil desde a colonia, mas por não ser da terra ou vaqueiro nunca sentiria.
Enquanto isso, aprendia a viver com as cadelas pastora-belgas Tzá Tzá de Jacques e Luna que ficaria comigo.
Eram cadelas com semelhantes as da foto e com elas, com os pastores experientes tive uma das relações mais surpreendentes da vida que era a interação homem, ovelhas e cães. E ao fim de tudo isso remontava a períodos muito anteriores da evolução humana.
Eles me explicavam que alguns cães ainda guardam períodos de um passado remoto de lobos que acompanhavam rebanhos. De algum modo os seres humanos foram tendo proximidade com esse animais e criou esse laço com gatos e cães que até hoje nos são importantes.
Tzá Tzã era muito vivaz e esperta, Luna era mais calma, mas era competente e com ela tive muitas experiencias inesperadas. Seu dono me disse: Enquanto vc estiver só com ela será tua. Quando eu chegar não divida o afeto e se anule. Uma cadela pastora só pode ter um mestre para não ficar confusa.
A transumância à pé estava sendo reprimida na França com a legislação de defesa sanitária. Aquele rebanha tinha ocorrido um caso de brucelose. Criadores locais eram hostis com nossa passagem. Entretanto, mesmo antes dessas restrições esse amigos faziam o trajeto como manifesto político. Por vezes as ovelhas no escapavam ao ver um pé de Marrom ou castanha portuguesa como conhecemos e os donos dos pés ficavam muito irritados. As ovelhas mais velhas já guiavam esse mapa e nós sabíamos exatamente onde teríamos que ser mais severos para evitar conflitos com camponeses.
Ovelhas possuem um comportamento de comer por 8 horas, ruminar por outras 8 horas e dormir 8 horas. Nem sempre como um relógio. Há um certo momento que elas param e se deitam e não há o que as faça sair daquele lugar.
São esses momentos que pegamos um livro ou algo para ouvir música que pode durar duas horas ou mais.
Morávamos em uma casa de pedra. Um fogão a carvão, muito frio, muito rústica, e a água para banho era num cano preto que de noite virava gelo. Tudo gelado. Mesmo sem neve era frio de Rio Grande do Sul. Aquecíamos tijolos revestidos de cerâmica e que depois eram colocadas em bolsas de pano para serem colocadas nas camas para aquece-las.
A paisagem era arbustiva com tomilhos e lavandas selvagens por todo o canto e genebras espinhosas.
O pastoreio começava as cedo e ia até perto de escurecer, quando trazíamos o rebanho para perto de nós e colocávamos o parque elétrico. Chegando no abrigo retirava a roupa e vinha todo o cheiro daquela plantas selvagens e o cheiro de tomilho era marcante.
Parece tudo romântico e pacífico, mas por vezes as ovelhas fugiam do parque elétrico e havia conflito com vizinhos que não gostavam delas invadirem suas terras e correr para evitar isso. Também era necessário fazer a cura de algum ferimento e oferecer sal e suplementação à alimentação.
O sinal de que deveríamos voltar seria quando as primeiras ovelhas parissem, pois os cuidados mudariam e não seriam mais possível o pastoreio. ovelhas quando dão duas crias tendem a rejeitar uma das duas, também podem as crias se engalharem e morrerem.
Naqueles dias de campo é que realmente comecei a ler. Aprendi a ser leitor em francês. Antes lia coisas do tipo Paulo Coelho e nada de clássicos ou políticas. Li meu primeiro livro de Marx "Capital, Trabalho e Lucro, L'Idiot de Dostoiévski, enquanto Jacques lia Guerra e Paz ou algum romance de Jack London sobre algum lugar frio. Um dia vi Jacques comer uma maça e me disse, como tudo, só sobra o talo. Toda vez que como maçã eu repito ele. Creio que é uma homenagem e também não gosto de ver comida ser jogada fora, inclusive a parte de baixo é a mais doce de toda a fruta e em geral é desprezada.
Conversávamos muito e ele me disse que antes de viver aquilo tudo vivia numa cidade operária e que se esgotou do trabalho repetitivo e que ali naquele trabalho ele se sentia mais saudável.
O problema é que na minha cabeça sempre tinha o que eu ia ser ou como ia ganhar a vida. Achava-me maduro, ainda professava o vegetarianismo e isso era uma contradição, cuidar de ovelhas e não comera carne.
Embora num ambiente pacífico e concreto a cabeça estava em turbilhão, nem eu sabia quanto era conturbada ou prenhe de vida eram meus anseios. Parte de mim ainda estava no Brasil e quanto mais eu percebia o autoritarismo, escravagismo e servilismo de nosso país eu mais percebia quanto ali não era meu lugar.
Eu sentia-me postiço. Ali era meu lugar, mas ao mesmo tempo não era. Minha politização começou ali ao meio de muitos conflitos internos. Li Proudhon e a frase a Propriedade é um roubo mexeu com minha cabeça. Não existia um estudo sobre comunismo, socialismo ou anarquismo. Ler Proudhon tangendo ovelhas era uma coisa, pensar no Brasil injusto era outra coisa. Havia uma culpa imbecil, mas a questão central é que não identificava ainda.
Não fui morar na França como emigrante econômico, não tinha um grande projeto e isso foi um tiro no escuro que abriu portas para questões ideológicas, políticas, práticas e profissionais.
Bem, estar naqueles morros de Ardeche sentindo a vida no tempo dos animais, do frio, do vento e de uma dinâmica do ser agora exigia uma maturidade. Aprendi cedo que aguento algumas pressões por mais tempo que outras pessoas.
Um dia começou a ventar. Ventava e não parava. Era um vento constante, forte e insuportável e o nome desse vento frio e constante era o Mistral. Anos mais tarde li que havia uma febre provocada por esse vento. As ovelhas eram tangidas para as pastagens e não saiam do lugar, buscavam abrigo, deitavam-se juntas, mas era necessário muda-las de lugar. Lembro-se talvez de três vezes isso ocorrer naquele tempo que fui pastor. Não se podia ler, ouvir música e tinha que ficar apenas parado com Luna, aguardando. Para quebrar o tédio procurava algumas amêndoas no chão da antiga fazenda e quebrava com pedras. Esta fazenda tinha muitas terraças "terrace", que são plataformas construídas para cultivos diversos. Na foto abaixo estão bem conservadas, nessa fazenda que vive por 4 meses eram ruínas na maior parte, outros lugares mais conservadas. Creio que são remanescentes do período medieval ou no caso dessa fazenda servia para plantar as amoreiras que é o principal alimento do bicho-da-seda.
Vez ou outra uma dessas pedras quebravam com a passagem das ovelhas e se podia ver um fóssil gigante de caramujo. Nos rios secos do fundo de vale era comum encontrar esses fósseis.
Nunca me senti só nesses momentos do dia, pensava muito e tinha um hábito de escrever cartas para muita gente, devia escrever mais de 30 páginas por mês. Também foi o período da construção de textos. Alguns parentes diziam que as cartas eram confusas. Creio entretanto, que as coisas que eu viviam eram difíceis de explicar mesmo se eu fosse mais detalhista.
O vento Mistral é muito intenso e nem mesmo dentro da cabana o desconforto cessava e após 3 ou 6 dias voltava ao normal e as ovelhas enlouqueciam a comer.
Duas passagens sempre gosto de contar para amigos dessa relação com cães pastores. Uma ocorreu quando Tza Tza entrou no cio e ela era mais selvagem que Luna. Estávamos eu e Jacques e uma ovelha desgarrou. Ele deu ordem de busca a Tza Tza e ela desapareceu ladeira abaixo atrás da ovelha.
Jacques muito nervoso disse que ia preparar o almoço e quando ela voltasse era para ralhar com ela e até chutar se fosse necessário para ela ir atrás dele. Ela depois de duas horas chegou com todo o peito manchado. Imaginei que ela tinha matado a ovelha.
Quando voltei ao abrigo Jacques me explicou que o cio pode deixar a cadela fora de seu comportamento normal, que é muito grave comerem a carne de ovelhas, inclusive evitam dar restos de mesa para esses cães para não virarem apreciadores da carne. Ele disse que foi severo com ela. Explicou que teria que descobrir onde foi o abate e enterra-la de forma Tzá Tzá não continuar a comê-la.
A estratégia era deixá-la sair por conta própria e ele a seguiria para descobrir. No segundo dia ela saiu sorrateira e ele a seguiu, ele descobriu um buraco escavado com folhas por cima. Brigou com ela e disse-me que a enterrou.
Essa história ajuda a entender que esses animais ainda guardam coisas do instinto, que o cio é um momento que esses animais mudam o comportamento. Embora estejam adestrados e gostem de estar com as ovelhas, não estão por nós seres humanos, mas por coisas do instinto que usamos a nosso interesse. Chega uma hora que bate mais forte a biologia.
Nesse mesmo caminho houve um dia que Jacques mandou eu subir uma encosta, levar um livro que ele ia tocar as ovelhas e que quando elas me encontrassem por rotina, eu a conduzisse para outro lugar. Havia roteiros de pastoreio que alternávamos.
Estava eu lá lendo meu livro há mais de 2 horas e ouvindo os sinos que cada uma carregava. São esse sinos uma forma de localizar o rebanho. Eu ouvia os sinos, mas não via o rebanho próximo de mim. Até que um momento elas chegaram, mas não era todas. Foi quando olhei na encosta do vale oposta a mim numa distancia de quase 1 km outra parte indo para uma fazenda de um vizinho que era bem hostil a nós.
Pensei que eu ia ser responsável por uma briga. Comecei a descer a ladeira e disse para Luna: Cherchê!! Cherchê!!! que é buscar em na ordem de pastoreio. E ela disparou com um raio e eu descendo a ladeira apavorado vi ela surgir do outro lado da encosta e trazer o rebanho para perto de mim. Nesse dia eu senti profundamente como funciona um pastoreio.
Resolvi contar essa história aqui, com algumas digressões e evitando outras. Tentando expressar o que senti ou percebi durante 6 meses sendo pastor de ovelhas.