terça-feira, 5 de setembro de 2023

Jardineiro aleatório da Praça dos Brinquedos

 

Dedicado a Rafael Guerra

pré-scritp: há erros de grafia, concordância etc

Em 2021 comecei a fazer uma jardinagem aleatória nos arredores da Praça do Brinquedos no B. Castelo em João Pessoa. Tenho formação em Geografia e posso olhar tudo que faço com base no que aprendi e dentro do pensamento Anarquista de auto gestão, auto determinação e de ação direta.


Algumas pessoas que começam a estudar o Anarquismo se apegam ao conceito de ação de direta de causar danos ao sistema autoritário, muitas vezes associado a práticas próximas dos Black Blocs ou Anarco-Punks e no passado aos atentados à aristocracia.


O conceito e prática essencial da ação direta deve partir de que se há algo o que se tem que fazer, o indivíduo sabe que tem que precisa ser feitos, tem conhecimento de como se faz e assume o indivíduo que para combater uma estrutura hierárquica e autoritária cada um precisa evitar delegar funções e agir para fazer o que tem que ser feito e se não consegue só que alerte outros a fazer.


Parto de um princípio mais antiautoritário que é nem alertar outros, pois quem pensa em ação direta olha a ação e já adere por auto consciência. Isto envolve outro princípio que é de ajuda mutua. Diante disso, uma Anarquista não precisa pedir obrigado a outro Anarquista por que a auto determinação e ajuda mutua é uma prática permanente e sempre aperfeiçoada.


Então, desde muito antes de conhecer o Anarquismo eu não esperava ninguém me dar ordem e determinar algo que eu sabia que tinha que ser feito por mim e do mesmo modo parei de esperar proteladores, preguiçosos e delegacionistas, basicamente contrário que sempre fui àquelas pessoas que gosta da frase: eu acho que vocês deviam……..! substitua os pontinhos pela resposta: Teu cu!


Voltando à jardinagem, não pedi ajuda a ninguém. Alguns ajudaram um dia, outros algumas vezes e isso eu sabia que era a prática comum e de partida não espero nada quando decido fazer algo. Bem que ao lado do muro de fundos do Colégio Doroteias uma rua estreita fazia anos que acumulava folhas, lixo e insalubre. Comecei plantando no canteiro estreito e na calçada sem calçamento Espada de São Jorge e outras plantas que sobrevivem sem necessidade de muita água. Essa limpeza já chamava a atenção. Depois coletei com Amilton que é reciclador do lado do Rio Jaguaribe 20 sacos de plástico e aos pouco fui ao local e comecei a raspar s folhas de arvore do rua e havia uma camada compactada pelos carros de 2 e até 3 cem de espessura. Enchi os 20 sacos de folhas e uma moradora bióloga ajudou a encher alguns sacos. Depositados na esquina os 20 sacos ficaram por quase 5 dias. Continuem aguando com baldes e plantando outras espécies.


A jardinagem tinha o objetivo de embelezar, de impedir descarregamentos de restos de obras e móveis na praça. Nesse processo eu carreguei de bicicleta, nos braços e com alguma contribuição esporádica mais de 200kg de mudas de plantas.


Na filosofia há duas frases que uso como anedotas. A primeira diz: Até uma pedra muda seu comportamento se ela se sentir observada. A segunda é: Se uma árvore cair numa floresta sem ninguém ela faz barulho na queda? Dessas duas anedóticas frases eu volta ao conceito de Geografia que diz que o espaço geográfico é um sistema de ações associados a um sistema de objetos (Miltom Santos) e especificamente o sistema de ações é a base praxial da transformação do espaço em sentido a uma sociedade autoritária ou antiautoritária. Logo, mexer com a calçada, com a praça começou a mexer com a micropolítica local e seus poderes tácitos e expressos. Foram surgindo disso donos ausentes da preocupação com sujeira, lixo e descaso com os arredores. Surgiram os que plantaram árvores e outros que estritamente espalharam suas extensões privadas de apropriação do espaço público.


Como Geógrafo eu estava sempre olhando o conceito de Y Fu Tuan sobre topofilia, topofobia, amores aos lugares e o conceito de não-lugar. A ação de coletar folhar e ensacar, esperar o despacho da empresa de limpeza foi tão impactante e o NÃO LUGAR das folhas acumulada por mais de 3 anos virou um LUGAR que um jardineiro amoroso e solitário, com um ou outro morador jogavam água mais por dó por meus esforços do que sua autoconsciência. O Lugar era cuidado, era amado e passou a sere revolucionário.


Esta não fui única experiencia social que fiz e isso é para qualquer pessoa. Se eu não estiver lá as folhas farão barulho? Se eu olhar e agir sobre um espaço, o comportamento desse Ser-Estranho (apelido que recebi em Presidente Prudente-SP) ira mudar o Micro Sistema de Ações e o Micro Sistema de objetos? Sozinho? Só eu com roupa de jardinerio carregando mudas nos braços?


A resposta 

simmmmmmmmmmmmmmmmmmm!!!

 

 

Agora as folhas são coletadas, calçaram e colocaram tijolinhos. Uma caçacada que era depósito de lixo atrás de uma escola burguesa. Esse calçamento, pintura não ficou por menos de R$6.000,00. Um gesto de ação direta obrigou alguém a torrar uma grana para fazer o que se recusaram por décadas.


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Sonho que se sonha só é a realidade. Esqueça bobagens de roqueiros narcisistas!

 Por muito tempo achei que essa frase da canção de Raul era um motivador social e de mudança coletiva.


"sonho que se sonha só é um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade"

 

Vc lembra ou ouviu algum sonho junto de Raul? Alguma obra coletiva? Ele alguma vez disse que só conseguiu alguma coisa sonhando com outras pessoas?

Ah tá! Era um afã poético para alguém que no caso, não era ele!

Realmente eu, por muito e muito tempo eu achei isso. Fiz várias incursões concretas em associativismo, estudei, pratiquei, doei minha vida em projetos que eram sonhados juntos.

Porém, direi a verdade de meus fatos. 

Pode até ser que um sonho sonho junto seja a realidade, mas já estive junto em pesadelos.

Salvei-me de pesadelos juntos só!

Sonho só se sonha só e assim tem que ser.

I have a dream! Martir Luther King não falou We have a dream!


Todos nossos sonhos que se tornam realidade são fundamentalmente solitários, sem pares e sobrevivemos ao fracasso sozinhos.

Se há algo que se fracassa, sempre é só e com pesadelos sozinho.

Ao menos Raul devia ter dado algum exemplo! Bem! Como cobrar dele o que nunca foi seu propósito!

Sociedade alternativa?

Sem trabalho? Sem dedicação ao outro? Sem processo? Sem reunião? Sem persistência?

Claro que continuo e continuarei a trabalhar pensando nos outros ou achando que se comunga sonhos, mas não como se essa frase fosse definitiva, contundente e um resolução.

Alguns sonhos se juntam! Alguns sonhos coincidem! Apenas isso e algumas vezes bem raras.

o sonho só é realidade quando vc individualmente se empenha nele. Se esbarrar com alguém que já sonha isso, pode ser, talvez seja, quem sabe se unam para realizar.

Teus sonhos construtivos e produtivos são todos solitários e a cura dos pesadelos em geral é do mesmo jeito.

Sonho que se sonha só é uma obrigação! Sonho que se sonha junto é um ocasião muito rara e a cada dia começo achar que é indesejável!

Sabe aquele negócio das varinhas que uma se quebra no meio, mas juntando as outras é mais difícil!? Pois bem, deveria ser verdade. 

A maioria das resistências vem de uma pessoa determinada e o conjunto dá sorte de pensar que é melhor seguir com ela. Só que isso é raro. Não pode ser o objetivo e é uma ocasião muito rara.

Sonhar só é a realidade incontornável! Sonha junto, depende de sonhos solitários contundentes pré existentes!


domingo, 17 de janeiro de 2021

Lembranças do Antonio Pastor de Ovelhas na França

 


Em 1991 vivi numa comunidade de ativistas políticos de esquerda no Sul da França chamada Cooperativa Europeia Longo Mai (https://www.prolongomaif.ch). Por um período de 1 ano e 6 meses. Parte desse tempo vivi no Departamento de Ardeche, numa cidade em ruínas e com pouco mais de 3 famílias. 

Sempre há erros de português e concordância, com o tempo revisito este texto e corrijo. 

Fui inicialmente para realizar um transporte a pé por 25 km com um rebanho de ovelhas da raça rustica Brebie.


Cheguei no redil (bergerie) onde o rebanho ficava e tive contato com a neve pela 1a vez. Minha experiencia com neve foi com uma bota inadequada e jamais sofri tanto com os frios nos pés. Isso se aprende logo em país frio, que ter roupas e calçados adequados não são tolices da mamãe.

Uma parte de ovelhas de mais de 13 anos estavam aflitas para partir para a viagem. O nome desse transporte é transhumance ou transumância em português. Essas ovelhas mais velhas lembrando anos anteriores puxavam o grupo para anos anteriores.


Tivemos que resgatar esse grupo que precocemente queria partir e no dia seguinte partiríamos. Um rapaz holandês emprestou iria emprestar a cadela pastoral dela. No trajeto de 25 km iriamos três pastores. Eu ia na frente guiando e outros dois pastores iam tangenciando. As ovelhas pastavam e caminhavam a 3km/h e sabemos que o ser humano anda 5 km/h. Andar reduzindo o passo é mais cansativo. Outro pastor ia dando suporte afinal demoraríamos 3 dias para fazer o percurso.

Eram 80 avelhas e um carneiro que ia cruzando com o rebanho. Supunha-se que até o final da transumância todo o rebanho estaria fecundado. 

Este caminho percorremos por uma França de interior, como eles chamava  La Profond France. Parte desse caminho era muito rustico e na minha compreensão bem medieval. Cruzávamos com camponeses e suas casas como sítios do Brasil, galinhas entrando na cozinha. A impressão era de pobreza e atraso, pois eu ainda era eivado de falsas percepções e compreensões.

Passávamos por "drailles" que são caminhos antigos em um período que na França se transportava rebanhos e se queria impedir evadissem para comer as lavouras.


Os drailles tinha idades que remontavam a ocupação romana e aquele vislumbrar do desconhecido do período pré-idade média já era um espetáculo. Nessa caminhada me deparei com uma estrada de pedras em ruínas do período do domínio romano.

Partimos de Espezone que ficava a mais de 1000 metros de altitude com neve e iríamos para uma fazenda abandonada que havia sido produtora de seda,  onde ficaríamos por 4 meses esperando as ovelhas se protegerem do frio e gestarem as ovelhinhas que nascem com 152 dias após a fecundação. 

A transumância é cansativa, mas eu tinha 23 anos e tudo isso era um choque de vida, de aprendizado e de desafios emocionais, intelectuais e políticos.

No final do dia montávamos uma cerca elétrica e prendíamos o rebanho de noite e dormíamos na casa de algum amigo da região que estávamos. 

Era uma mistura de dias brutos ao vento e a dureza de um transporte com risco e de noite na casa de educados e gentis franceses de esquerda que para mim tinham tudo de burgues menos a consciência.

Isso sempre me chamava atenção na França, ter grana não era sinônimo de ser cuzão. Não ter grana não significava ser ignorante político. Eu ainda vivia o binômio do esquerdismo de que se a pessoa tem grana é de direita! Quebrar esses preconceitos e essa visão foi um exercício tolo, mas necessário.

Nessas estadias, uma comida foi feita na panela de pressão e foi colocada para fora da janela para esfriar.  Afinal o frio era maior que de geladeira no Brasil. Tudo era engraçado, inesperado e chocava-se com as coisas que eu tinha conhecido.

Eu usava muitas roupas, cachecol, toca e luvas, inclusive o suéter de lã que minha mãe havia tricotado em 1985. Ainda as possuo. 

Foto 

Incrível o que se aprende e se pode viver em 4 ou 5 dias de vida. o penúltimo dia mais cansativo de todos os 3 da tarefa dormimos num galpão com palhas. 


Dormir num galpão de palhas de trigo, cevada, aveia ou centeio e estar naquela pegada rustica me fazia perguntar sobre aqueles transportes de gado do Brasil, tropeiros e essas coisas. Falava comigo, vim de longe para sentir coisas que acontecem no Brasil desde a colonia, mas por não ser da terra ou vaqueiro nunca sentiria.

Enquanto isso, aprendia a viver com as cadelas pastora-belgas Tzá Tzá de Jacques e Luna que ficaria comigo.



Eram cadelas com semelhantes as da foto e com elas, com os pastores experientes tive uma das relações mais surpreendentes da vida que era a interação homem, ovelhas e cães. E ao fim de tudo isso remontava a períodos muito anteriores da evolução humana.

Eles me explicavam que alguns cães ainda guardam períodos de um passado remoto de lobos que acompanhavam rebanhos. De algum modo os seres humanos foram tendo proximidade com esse animais e criou esse laço com gatos e cães que até hoje nos são importantes.

Tzá Tzã era muito vivaz e esperta, Luna era mais calma, mas era competente e com ela tive muitas experiencias inesperadas. Seu dono me disse:  Enquanto vc estiver só com ela será tua. Quando eu chegar não divida o afeto e se anule. Uma cadela pastora só pode ter um mestre para não ficar confusa.

A transumância à pé estava sendo reprimida na França com a legislação de defesa sanitária. Aquele rebanha tinha ocorrido um caso de brucelose. Criadores locais eram hostis com nossa passagem. Entretanto, mesmo antes dessas restrições esse amigos faziam o trajeto como manifesto político. Por vezes as ovelhas no escapavam ao ver um pé de Marrom ou castanha portuguesa como conhecemos e os donos dos pés ficavam muito irritados. As ovelhas mais velhas já guiavam esse mapa e nós sabíamos exatamente onde teríamos que ser mais severos para evitar conflitos com camponeses.

Ovelhas possuem um comportamento de comer por 8 horas, ruminar por outras 8 horas e dormir 8 horas. Nem sempre como um relógio. Há um certo momento que elas param e se deitam e não há o que as faça sair daquele lugar.

São esses momentos que pegamos um livro ou algo para ouvir música que pode durar duas horas ou mais. 

Morávamos em uma casa de pedra. Um fogão a carvão, muito frio, muito rústica, e a água para banho era num cano preto que de noite virava gelo. Tudo gelado. Mesmo sem neve era frio de Rio Grande do Sul. Aquecíamos tijolos revestidos de cerâmica e que depois eram colocadas em bolsas de pano para serem colocadas nas camas para aquece-las.

A paisagem era arbustiva com tomilhos e lavandas selvagens por todo o canto e genebras espinhosas. 


O pastoreio começava as cedo e ia até perto de escurecer, quando trazíamos o rebanho para perto de nós e colocávamos o parque elétrico. Chegando no abrigo retirava a roupa e vinha todo o cheiro daquela plantas selvagens e o cheiro de tomilho era marcante.

Parece tudo romântico e pacífico, mas por vezes as ovelhas fugiam do parque elétrico e havia conflito com vizinhos que não gostavam delas invadirem suas terras e correr para evitar isso. Também era necessário fazer a cura de algum ferimento e oferecer sal e suplementação à alimentação.

O sinal de que deveríamos voltar seria quando as primeiras ovelhas parissem, pois os cuidados mudariam e não seriam mais possível o pastoreio. ovelhas quando dão duas crias tendem a rejeitar uma das duas, também podem as crias se engalharem e morrerem. 

Naqueles dias de campo é que realmente comecei a ler. Aprendi a ser leitor em francês. Antes lia coisas do tipo Paulo Coelho e nada de clássicos ou políticas. Li meu primeiro livro de Marx "Capital, Trabalho e Lucro, L'Idiot de Dostoiévski, enquanto Jacques lia Guerra e Paz ou algum romance de Jack London sobre algum lugar frio. Um dia vi Jacques comer uma maça e me disse, como tudo, só sobra o talo. Toda vez que como maçã eu repito ele. Creio que é uma homenagem e também não gosto de ver comida ser jogada fora, inclusive a parte de baixo é a mais doce de toda a fruta e em geral é desprezada.

Conversávamos muito e ele me disse que antes de viver aquilo tudo vivia numa cidade operária e que se esgotou do trabalho repetitivo e que ali naquele trabalho ele se sentia mais saudável.

O problema é que na minha cabeça sempre tinha o que eu ia ser ou como ia ganhar a vida. Achava-me maduro, ainda professava o vegetarianismo e isso era uma contradição, cuidar de ovelhas e não comera carne.

Embora num ambiente pacífico e concreto a cabeça estava em turbilhão, nem eu sabia quanto era conturbada ou prenhe de vida eram meus anseios. Parte de mim ainda estava no Brasil e quanto mais eu percebia o autoritarismo, escravagismo e servilismo de nosso país eu mais percebia quanto ali não era meu lugar.

Eu sentia-me postiço. Ali era meu lugar, mas ao mesmo tempo não era. Minha politização começou ali ao meio de muitos conflitos internos. Li Proudhon e a frase a Propriedade é um roubo mexeu com minha cabeça. Não existia um estudo sobre comunismo, socialismo ou anarquismo. Ler Proudhon tangendo ovelhas era uma coisa, pensar no Brasil injusto era outra coisa. Havia uma culpa imbecil, mas a questão central é que não identificava ainda.

Não fui morar na França como emigrante econômico, não tinha um grande projeto e isso foi um tiro no escuro que abriu portas para questões ideológicas, políticas, práticas e profissionais.

Bem, estar naqueles morros de Ardeche sentindo a vida no tempo dos animais, do frio, do vento e de uma dinâmica do ser agora exigia uma maturidade. Aprendi cedo que aguento algumas pressões por mais tempo que outras pessoas. 

Um dia começou a ventar. Ventava e não parava. Era um vento constante, forte e insuportável e o nome desse vento frio e constante era o Mistral. Anos mais tarde li que havia uma febre provocada por esse vento. As ovelhas eram tangidas para as pastagens e não saiam do lugar, buscavam abrigo, deitavam-se juntas, mas era necessário muda-las de lugar. Lembro-se talvez de três vezes isso ocorrer naquele tempo que fui pastor. Não se podia ler, ouvir música e tinha que ficar apenas parado com Luna, aguardando. Para quebrar o tédio procurava algumas amêndoas no chão da antiga fazenda e quebrava com pedras. Esta fazenda tinha muitas terraças "terrace", que são plataformas construídas para cultivos diversos. Na foto abaixo estão bem conservadas, nessa fazenda que vive por 4 meses eram ruínas na maior parte, outros lugares mais conservadas. Creio que são remanescentes do período medieval ou no caso dessa fazenda servia para plantar as amoreiras que é o principal alimento do bicho-da-seda.


Vez ou outra uma dessas pedras quebravam com a passagem das ovelhas e se podia ver um fóssil gigante de caramujo. Nos rios secos do fundo de vale era comum encontrar esses fósseis. 

Nunca me senti só nesses momentos do dia, pensava muito e tinha um hábito de escrever cartas para muita gente, devia escrever mais de 30 páginas por mês. Também foi o período da construção de textos. Alguns parentes diziam que as cartas eram confusas. Creio entretanto, que as coisas que eu viviam eram difíceis de explicar mesmo se eu fosse mais detalhista. 

O vento Mistral é muito intenso e nem mesmo dentro da cabana o desconforto cessava e após 3 ou 6 dias voltava ao  normal e as ovelhas enlouqueciam a comer.

Duas passagens sempre gosto de contar para amigos dessa relação com cães pastores. Uma ocorreu quando Tza Tza entrou no cio e ela era mais selvagem que Luna. Estávamos eu e Jacques e uma ovelha desgarrou. Ele deu ordem de busca a Tza Tza e ela desapareceu ladeira abaixo atrás da ovelha. 

Jacques muito nervoso disse que ia preparar o almoço e quando ela voltasse era para ralhar com ela e até chutar se fosse necessário para ela ir atrás dele. Ela depois de duas horas chegou com todo o peito manchado. Imaginei que ela tinha matado a ovelha. 

Quando voltei ao abrigo Jacques me explicou que o cio pode deixar a cadela fora de seu comportamento normal, que é muito grave comerem a carne de ovelhas, inclusive evitam dar restos de mesa para esses cães para não virarem apreciadores da carne. Ele disse que foi severo com ela. Explicou que teria que descobrir onde foi o abate e enterra-la de forma Tzá Tzá não continuar a comê-la. 

A estratégia era deixá-la sair por conta própria e ele a seguiria para descobrir. No segundo dia ela saiu sorrateira e ele a seguiu, ele descobriu um buraco escavado com folhas por cima. Brigou com ela e disse-me que a enterrou. 

Essa história ajuda a entender que esses animais ainda guardam coisas do instinto, que o cio é um momento que esses animais mudam o comportamento. Embora estejam adestrados e gostem de estar com as ovelhas, não estão por nós seres humanos, mas por coisas do instinto que usamos a nosso interesse. Chega uma hora que bate mais forte a biologia.

Nesse mesmo caminho houve um dia que Jacques mandou eu subir uma encosta, levar um livro que ele ia tocar as ovelhas e que quando elas me encontrassem por rotina, eu a conduzisse para outro lugar. Havia roteiros de pastoreio que alternávamos.

Estava eu lá lendo meu livro há mais de 2 horas e ouvindo os sinos que cada uma carregava. São esse sinos uma forma de localizar o rebanho. Eu ouvia os sinos, mas não via o rebanho próximo de mim. Até que um momento elas chegaram, mas não era todas. Foi quando olhei na encosta do vale oposta a mim numa distancia de quase 1 km outra parte indo para uma fazenda de um vizinho que era bem hostil a nós.

Pensei que eu ia ser responsável por uma briga. Comecei a descer a ladeira e disse para Luna: Cherchê!! Cherchê!!! que é buscar em na ordem de pastoreio. E ela disparou com um raio e eu descendo a ladeira apavorado vi ela surgir do outro lado da encosta e trazer o rebanho para perto de mim. Nesse dia eu senti profundamente como funciona um pastoreio. 

Resolvi contar essa história aqui, com algumas digressões e evitando outras. Tentando expressar o que senti ou percebi durante 6 meses sendo pastor de ovelhas. 






 












domingo, 8 de novembro de 2020

A pedagogia anarquista salvaria estudantes em 2020, mas seria uma ida sem volta!

 





A pedagogia anarquista não foi criada para criar anarquistas, mas foi criada para oferecer a resistência contra o autoritarismo.


Não foi feita apenas para libertar a mente e favorecer as condições de autonomia de aprendizagem, mas para criar um sujeito da própria consciência de um ser e sua intima relação com o coletivo.


Se a pedagogia é apenas anti autoritária ou apenas da autonomia do ser, não será anarquista por isso, mas por decisão do sujeito.


E por isso mesmo a pedagogia anarquista era e será  a unica coisa humanitária a ser oferecida aos estudantes num cenário de pandemia como a ocorrida em 2020.


Por que?


Porque os professores foram obrigados a transmutar a odiosa aprendizagem obrigatória para meios virtuais e plataformas de streamming. A traduzir aquela tragédia, pouca coisa se aproveita.


Nunca estudantes em idade tão tenra, pais empenhados ou não na educação de seus filhos, até graduandos perceberam a inutilidade de uma aula obrigatória.


Lutam, brigam, adaptam  e ao fim o estrago pedagógico e emocional a todos se evidenciou o que se sabe qualquer sincero filósofo da educação.


Ensino obrigatório, padrão em qualquer situação é uma violência contra a pessoa.


Perdemos nesse ano de 2020 a oportunidade de fazer o melhor.


Criamos uma tortura que gerou uma queda de humor, queda de aprendizagem e emparelhou a educação à nulidade completa.


Haverá sobreviventes, sempre há!


Os que perceberam que a educação obrigatória é uma farsa, jamais se recuperarão!

E a pedagogia anarquista, antiautoritária e da autonomia do sujeito sendo a mais humana, não foi a opção por quê?


Simples é a resposta. Se a pedagogia da autonomia do sujeito e antiautoritária fosse adotada, nenhum estabelecimento de ensino voltaria a ser o que é. Acabaria toda essa estrutura de condicionamento da educação.


Houve uma escola democrática e antiautoritária, pode ser uma anedota, que quando os pais tomaram consciência do que a escola fazia, preferiram retirar as crianças da escola por que lá nada se aprendia.


Se não é uma anedota, isso prova duas coisas: os pais querem que essas crianças virem adultos produtivos o mais rápido possível e que eles nunca sentaram para dialogar sobre a educação de seus filhos e filhas.


Não haverá pedagogia anarquista, mas deveria!



sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Campanha Despejo Zero e as prostitutas de Barcelona

 

https://cientistasfeministas.wordpress.com/2018/12/04/as-mulheres-livres-ontem-e-hoje/

Soube que durante a Guerra Civil Espanhola que as mulheres militantes do anarquismo se colocavam a gritar diante de prostíbulos convocando elas abandonarem aquela condição e se incorporarem à luta antifascista. (confira https://ken.pucsp.br/verve/article/viewFile/5023/3565)


Sempre que se coloca na posição de olhar as pessoas em suas condições precárias de vida, quem se sensibiliza com a vulnerabilidade se arroga a responsabilidade de mudar essas situações. 


Esse comportamento pode ser de qualquer pessoa sensível.


A questão das anarquistas de Barcelona e os movimentos de esquerda não são movidos pela questão caritativa pura e desvinculada de mudanças estruturais da sociedade.


Caridade “caritas” é termo que significa em Latim a “afeto ou estima” e é derivado de outro termo “CARUS” que significava “agradável, querido”.


Atuar com populações em vulnerabilidade pode vir do afeto ou de ver os outros como queridos e ser agradável. Só que no campo político a caridade possui um peso de uma bondade que acolhe uma ausência.


As anarquistas de Barcelona não estavam querendo ou sendo agradáveis, inclusive, elas estavam brigando para as prostitutas sairem daquela condição por um intento de solidariedade.


Estou passando por esses estudos de palavras e a palavra solidariedade deriva de solidus do latim. Aquilo que se confia e que tem solidez.


Caritas e solidariedade se separa e se unem, fato é que se você é sólido você não está sendo agradável e a mudança precisa ser confiável, constante e permanente. Não há proveito próprio por causa de ter solidez e significa ir além das margens do ego e obtenção de louros.



A campanha Despejo Zero que foi lançada recentemente, tendo como seu paradigma enfrentar ações judiciais de despejo das populações vulneráveis dos lugares que ocupam em momento de Pandemia e pós-pandemia.


São progressistas, humanistas e esquerdistas que estão à frente desse movimento para defender essas populações. 


Infelizmente no momento de eleições muitas dessas populações vulneráveis estão escolhendo candidatos a vereança e a prefeitura que são candidatos que sempre foram favoráveis ao despejo e hiper valorização do solo urbano para especulação.


Então, como as anarquistas de Barcelona gritamos “Não votem em candidatos do despejo!!!”


Será que ouvirão!?




C"est La Vie

 



C"est La Vie (tradução)

Emerson, Lake And Palmer

The Very Best of Emerson, Lake & Palmer





É a vida

Será que as suas folhas todas já ficaram marrons?

Será que você vai espalhá-las a sua volta?

É a vida

Você ama?

E como vou saber?

Se você não deixa o seu amor transparecer prá mim

É a vida


Oh é a vida

Oh é a vida

Quem sabe quem se importa comigo?

É a vida


De noite

Você acende a chama de um amor?

Será que as cinzas do desejo por você, permanecem

Como o mar

Há um amor profundo demais pra ser revelado

Precisou de uma tempestade

Pra que meu amor chegasse (fluísse) a você

É a vida


Oh é a vida

Oh é a vida

Quem sabe quem se importa comigo?

É a vida


Como uma canção

Fora do tom e fora do tempo

Tudo o que precisávamos era uma rima prá você

É a vida

Você se entrega?

Você vive cada dia?

Se não houver canção eu posso tocar pra você

É a vida


Oh é a vida

Oh é a vida

Quem sabe quem se importa comigo?

É a vida



sábado, 22 de agosto de 2020

Eu morri na quarentena pandêmica

No início da quarentena eu pensei que morreria. Ainda sei que posso morrer. Temia gente próxima falecer e algumas faleceram. O discurso de arreganhamento do demônio me deu mais certeza do fim. Só caiu a ficha que eu poderia morrer, quando tive que ir na UPA de Cruz das Armas e no salão frontal de portas de vidro aquele espaço fazia a vez uma vitrine macabra da morte expondo dois pacientes todos envelopados de branco e se poderia bem afixar uma placa: “Nós que aqui estamos esperando por vós!” Eu fui morrendo na quarentena. Morri para alguns falsos valores. 

Despedi-me de mim algumas vezes. Estava dentro do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Por Direitos repleto de dilemas de higiene e cuidados, pois estávamos visitando comunidades vulneráveis. Descuidos com uso de máscaras, EPI’s mal utilizados, não utilizados ou inadequados e desinfeccionamentos precários.

 Passeei no centro de João Pessoa, num dia de semana, em hora que seria de pleno pico e me lembrava da imagem do Papa caminhando em Roma só. A cidade era um luto ou pré-luto evaziada de vida, de esperança. A rua era um esquife gigante. 

Sublimei todos esses aspectos horripilantes e decidi que não queria estar em outro lugar que não fosse perto daquelas pessoas que eu tentava cuidar nas franjas da Grande João Pessoa. Eu cuidava de mim. Estava e estou entendendo a despedida do mundo. No final, sempre estamos despedindo da vida, só que a pandemia e o demônio que nos atormenta desde 2015 deram mais sabor de fim inexorável e inevitável. 

Como saber que antes de você morrer narciseamente, morre o outro lado não egoico. Eis-me cá vivo, sempre morrendo, sempre sendo otimista e sempre morto dentro de mim. As consequências de ser um fantasma com corpo é que você pode agir como vivo. Só que as regras caíram. 

Estava em em março de 2020, dia sim dia não, indo nadar nas águas da praia do Bessa. Um dia uma caravela queimou minhas pernas e não morri. Um dia vi seres estranhos, era a corda de uma ancora. Um dia ouvi uma revoada de pássaros e antes de meu cu apertar cortando vergalhão era um cardume que saltava. Eu tenho muito medo dos seres marinhos desconhecidos. 



Enquanto eu morria afetivamente, politicamente e psiquicamente, faleciam milhares de pessoas e não era somente possível a minha morte como era também provável e ainda é. Minhas decisões não estão muito pautadas nesse futuro e nas minhas hipocrisias. Tento viver até meus erros de verdade. Hoje acordei e falei, já cometi erros e falhas tão grandes que poderia fazer uma classificação de nível 1 a 10, sendo 1 o grau de pior arrependimento. Nessas reflexões atoladas nesse poço de mim mesmo, ensimesmado, tal classificação só serviria para meu bom exercício de centrar em mim mesmo.

 No final dessa reflexão surge este texto. Seguramente, para muitos que se foram sem se despedirem e na angustia de obter ar, falecendo de asfixia ou de outra moléstia do corpo afetada por esse vírus, eu declaro que todos nós morremos. Carrego a carcaça sã como todos e todas vivas, mas a insanidade da ausência completa de empatia, não somente deste governo, de toda ordem capitalista que é incapaz de acudir a humanidade, inclusive na garantia de funerais dignos, ainda se afeta. 

Minha carcaça ainda se revolta. Nossa morte existencial que começa quando nascemos se encontrou com a morte conjectural. Resulta que nada é tão ruim ou bom quanto imaginamos. Estarei vivo e morto para garantia que meus erros sejam devidamente cometidos e para garantir que alguns acertos comprovem que fui muito esmerado em não ser o melhor Antônio possível e nem o melhor Antonio de mim. 

A condição dessa morte me joga direto para o despojamento, para o minimalismo e para o desacumulo. Cresceu a intolerância a quem tem prisão de ventre mental, que param dentro de si achando que terão outra vida e outro momento para viver. 



Minha persistência em viver é tão gigante quanto meu esmero em estar morto. Por isso, as pequenas injunções políticas, os limites “do pode não pode”, as decisões do idiota se aperfeiçoar em ser mais idiota e da pessoa acreditar que é invulnerável me faz por um lado rir e por outro chorar, já que o sentido da autoproteção nem sempre é o outro, talvez nunca seja. 

Uma amiga me pediu para eu me cuidar! Descuidarei-me como sempre!Hoje irei ao mar do Bessa temer monstros marinhos!