Em 2004 tive uma
experiência em sala de aula que considero a mais significativa
sobre meu pensamento a favor da pedagogia anarquista.
Na formação de
geógrafos e educadores em geografia o trabalho de campo é sempre
colocado como peça chave. Rouseau, Tolstoi e tantos outros
precursores da educação sugerem ir no mundo real para aprender
sobre a física e o mundo.
Assim, alguns geógrafos marxistas no
Brasil que se preocupam com a pedagogia, didática e transformações
em prol de uma sociedade mais justa juntam ao coro da aula de campo,
excursões, visitas de campo, aula externa e qualquer outra prática
que tire os estudantes da sala e da escola para ver o mundo em sua
dinâmica própria.
Então, no mesmo ano de
2004 eu fiz aulas de campo no litoral de João Pessoa com estudantes
do ensino médio do CEFET-PB. Essas aulas eram para brindar a amizade e
confiança já adquirida e conquistar outros mais reticentes. Depois
pedi a todos que fizessem um relatório expedito, nada discursivo que
apenas relatasse o que viram.
Foi uma experiência
bem sucedida e consegui chegar a um resultado satisfatório,
salvo um relato do estudante Y que mostrou outro sentido do que pedi
e que após ler seus escritos, tive discussões em minha casa, perdi uma noite de
sono e fiquei no dilema entre dar uma boa avaliação ou anular o
valor desse trabalho.
Passei muitos anos
buscando esse relato entre minhas coisas e já tinha dado como
perdido, até que 9 anos após, revendo antigas correspondências, me
deparo com esse importante documento de minha formação.
Agora reproduzo esse
relato e finalizarei com o eu aprendi disso e por qual razão esse
conteúdo é uma marco simples mas de muita valia para o que fui
desenvolvendo depois.
Relato do estudante Y
Pouco sei falar da aula de campo de geografia que ocorreu no último sábado, eu quase desisti de ir devido à minha rotineira preguiça, de madrugada tomei banho de laminas cortantes e quando fui para a parada de ônibus mal notei que perdi um ônibus que passava bem ao alcance de meus olhos. Mas incrivelmente consegui chegar lá, eu me deparei com a minha turma desunida que finge ser “legal”, mas que REALMENTE não é! Cumprimentei alguns amigos que eu não tenho e tentei entrar no jogo dissimulado do 2° ano , sim, por que eu não poderia deixar de ser ridículo também? Por um dia eu não poderia deixar de ser o estanho da sala? Eu estava em uma praia que nunca havia ido, e (era sábado). Quando descemos para a areia o professor falou de umas pedras; o que pode ter de interessante em pedras? Eu tentei escutá-lo, na verdade eu até escutei, mas sinceramente não lembro de quase nada do que ele disse, talvez porque eu não achei interessante, por que as pedras não eram tão “adoráveis” como as pessoas da sala?O meu objetivo continuava de pé, apesar de andar, andar, andar... E o sol então? Deus seria quase perfeito se eu não existisse o dia! Mas, mesmo com todos os problemas, eu tentei ser simpático, como na verdade eu sempre tento, acho agora que sou o mais dissimulado daquela turma! Não quero me apegar aos detalhes que não existem sobre este ignóbil passeio!Também não falarei das pedras, nem sobre as falésias vivas ou mortas, nem das moribundas. Pois na verdade, nada sei sobre tudo, e nem consigo fazer uma relação normal, assim como fazem todas as pessoas!O que me lembro é que fiz duas coisas inéditas, talvez disso eu não me esqueça: dancei forró (um ritmo nojento) pela primeira vez, não que isto seja motivo de orgulho, mas foi algo inédito para mim; era engraçado os aborígenes da praia lavando roupas num rio fétido (rio peruca, eu acho!), com pessoas apontado-as como se fosse algo muito distante de nossa realidade; também fiz outra coisa surpreendente, tirei uma foto com a turma que eu não faço parte (eu odeio ser fotografado!).Mas, por que eu não dormi naquele dia? O que me levou a ir para esta simples aula de campo? Nada? Pois na verdade eu não fui, eu continuei dormindo para que eu perdesse meu tempo fazendo relatório completamente sem nexo! E sabe o que disseram as pessoas da sala num só coro com belíssimos sorrisos: - Nos adoramos a aula de campo!
Quando me deparei e li
esse relato eu desmontei de tristeza e de raiva. Trabalhei um dia sem
remuneração, vi todos felizes e por qual razão um jovem perderia tempo de fazer um testemunho de si, dos outros e de minha prática
tão negativos?
Demorei bastante a
perceber que ele me deu uma prova maior de confiança, afinal, por
que se auto denunciar? Hoje relendo, percebi que ele aprendeu muito
mias do que eu imaginei. Na época tasquei a nota máxima. O espanto
do estudante Y quando viu isso foi engraçado! Ele realmente queria
se ferrar! Coisa de jovem suicida!
Sofri para entender o
negativismo e a apresentação de falta de sentido que a aula de
campo teve. Mas na época eu entendi que a melhor coisa que uma
estudante pode oferecer a um professor é a confiança de que suas
palavras serão respeitadas. Também, que não há uma prática
pedagógica que seja boa para todos.
Hoje, com os parâmetros
da pedagogia anarquista, compreendo que o ensino formal, unificado,
de massa, obrigatório e autoritário faz muito mal às pessoas.
Alguns conseguem falar do mal estar que sentem, outros não se
demonstram perturbados e sobrevivem.
Esse relato ranzinza
foi um dos primeiros eventos que me deram a partida para sair da
proposta marxista na pedagogia em seu cunho reducionista, autoritário
e diretivista.