quarta-feira, 5 de março de 2014

Cooperativa Longo Maï a minha primeira experiência coletiva


Entre maio de 1991 e dezembro de 1993 vivi em Longo Maï-França. Ai tive a primeira experiência coletiva de minha vida. Nesse período passei os primeiros meses com uma equipe de marcenaria em Forcalquier/Limans. Depois me mudei para outra fazenda Longo Mai em Treynas, distrito de Chanéac, na Alta -Ardèche onde cuidava de ovelhas e animais da fazenda. Antes de partir vivi seis meses em Mas de Granier, em Saint-Martin-de-Crau, onde cuidava de legumes orgânicos, participava das feiras livres. Em cada um desses lugares tive experiência que me marcaram.

A minha preocupação com ações coletivas se iniciaram bem cedo em minha vida. Durante os anos de 1983 e 85 tive conhecimento teórico do cooperativismo na escola agrícola e esse tema sempre tomava meu máximo de idealismo juvenil, acima inclusive de minha autonomia econômica.

O desejo por processos sociais e coletivos começaram cedo, mas transitavam entre o idílico e autossuficiência rural. Dessas experiências vistas e algumas parcialmente vividas, associadas o naturalismo criou-se em mim um aspecto sectário e de entrega monástica.

Em 1991 soube da existência de uma comunidade na França através de minha irmã. Ela me informava que Longo Mai recebia jovens do mundo inteiro e que seria uma boa experiência se eu juntasse dinheiro para comprar a passagem e ver o que era isso.

Na época eu criava abelhas em Leoldina-MG. Tinha parceria com fazendeiros e cuidava de 30 colmeias. Vendia o mel e a própolis no Rio de Janeiro. Com esses ganhos e com muita ajuda eu comprava dólares para não ser corroído pela inflação agressiva da década de 1980. Pus-me a estudar francês com um professor que vivia em Leopoldina, que sempre amou a língua, mas nunca conseguiu viver em país francófono.

O que eu entendia de Longo Mai era que tinha um caráter político de esquerda, mas isso passava pela minha cabeça como um local de ações humanitárias. A percepção do que era coletivismo, organização e ações políticas eu só fui compreender quando lá cheguei.

Ao chegar na França eu não entendia nada do francês falado. Por sorte em Avingon, quando desembarquei na estação de trem, consegui encontrar um estacionamento debaixo da estação, que de fato era uma rodoviária. La estava escrito o horário do ônibus para a cidade de Forcalquier.

Forcalquier era uma dessas pequenas cidades do interior da França com poucos habitantes. Os telefones haviam acrescido um número na época e eu não conseguia fazer contato. Essa experiência de não saber me comunicar e ter que me virar me deu para o resto da vida a compreensão próxima do que é uma pessoa analfabeta e surda.

A cada pessoa de Forcalquier que eu perguntava e me dirigia eu não era bem tratado. Depois soube que Longo Mai não era muito querida na época por algumas pessoas da cidade. Entrei num bar e um camarada de bota, chapéu e adereços de cowboy puxou ou eu puxei assunto. Ele ia para Longo Mai e que eu esperasse ele tomar umas doses de Pastis (um extrato de anis estrela alcoólico que se adiciona 4 partes de água, no Brasil chama-se Arak). Achei engraçado e meio cafona, mas foi a única pessoa que entendeu para onde eu ia. Era um dia quente e o carro dele era uma kombi adaptada como uma casa.

Assim comecei a ver a terra seca, pastagem de característica árida que aprendi ser a paisagem mediterrânea da Provença. A ansiedade de chegar naquele lugar era incrível. Língua estranha, lugar diferente e totalmente descolado das coisas que me davam segurança.

Uma brasileira morava no local e me recebeu apresentando um rapaz português, José, que iria conversar comigo com mais calma e me integrar na equipe dele. José era uma pessoa de muitas habilidades por ser marceneiro, enfermeiro e por ter feito muitas coisas na vida. E tinha o lado português que é uma proximidade diferente para a cultura que eu tinha.

Nessas primeiras conversas eu fui integrado na equipe de marcenaria. As atividades gerais eram fazer cozinha uma vez por semana, fazer parte da equipe de rádio noturna, panificação, alimentar os porcos e qualquer outra atividade de mutirão para colheita.

Nesse primeiro contato senti que tudo me atraia. Não eram calorosos, mas amistosos. Não percebia relações familiares, embora houvesse muitos jovens e crianças. Localizar os casais e referenciais de família perdurou por algum tempo até que eu desistisse. Na verdade, eles não incentivavam essa sensação de família nuclear e mais tarde entendi como era essa relação entre os casais e seus filhos.

No entardecer tive a sorte de ser um dia que o Comédia Mundi, grupo musical de canções cigana ia tocar. O refeitório da comunidade era também o palco, Grange Neuve se chama. Esse espaço tinha sido no passado um abrigo de ovelhas modificado para ser uma sede de convívio. Era todo feito em pedras e madeira reconstruído por eles, embora grande, com todas aquelas pessoas e mesas ficava muito aconchegante e para minha cabeça, um tanto medieval.

O jantar me impressionava pela forma mesmo dos franceses comerem uma salada de entrada com vinho e pão, depois o prato principal e o acompanhamento, mais aquela movimentação de gente de várias nacionalidades. Só essa ambientação multicultural já me deixava extasiado.

As músicas ciganas coroaram a chegada e o início de uma paixão com tudo aquilo que era maior do que eu imaginava. Com 21 anos eu já era um romântico exagerado, mais aquele ambiente internacionalizado e fazendo coisas políticas, prática e em coletividade, me fazia perceber que aquilo não podia ser vivido só um pouquinho de mim. Decidi permanecer o máximo possível.

Eu tinha que aprender logo o francês e me virar para entender aquelas discussões tão malucas e densas. Nas noites que se seguiram eu me sentia entre extasiado e confrontado com valores morais que mais tarde percebi ser resultado de minha formação cristã, ainda que já me considerasse ateu. Ateu cristão era risível. No Brasil somos cristãos por osmose, até quem se nega crer e ter fé divina é cristão e no pior sentido.

Em qualquer noite alguém poderia bater uma faca ou garfo num copo e iria acontecer uma reunião grande. Havia um dia específico que sempre ocorria algum informe, convocação para alguma frente de trabalho, um debate de algum visitante que podia ser músico, político, jornalista ou membro de outra comunidade Longo Mai. Havia várias coletividades na França, Suíça, Áustria, Ucrânia e até na Costa Rica.

Numa forma genérica o que mais se aproximava dessa organização eram os kibutz de Israel, mas com um cunho de engajamento de esquerda. No primeiro momento eu pouco compreendia esses debates por serem temas que não faziam parte de minha formação, por serem questões políticas e abordagens próprias deles e pela precária compreensão do francês que ainda não era capaz de acompanhar essa complexidade, mesmo se fosse em português eu não teria entendido muito o que era debatido.

Tive uma formação política que era bem rasa e se limitava à justiça social. Não fazia muita ideia de questões políticas mundiais e o máximo que podia dizer era que Collor era representante das oligarquias brasileiras. Não sabia o que era luta de classes, privatização, unificação da Europa, queda do muro de Berlim, fragmentação da Iugoslávia, das descolonizações dos países africanos e a tragédia que os abatia.

Era muita coisa para meu puritanismo, vegetarianismo, ateísmo cristão, sexismo, imaturidade, romantismo, além disso, não sambava, não jogava futebol e impregnado de um ecologismo idílico-narcisista. Ao meu favor? Um pouco do calor humano brasileiro, estigma da felicidade em sofrimento, a música, cultura legal e uma vontade grande fazer coisas com e pelos outros que sempre me acompanhou. Essa vontade de fazer junto nunca me largou e mesmo com meus equívocos e imaturidade, sei bem que isso que me segurou em momentos de confronto.

O confronto, o conflito e o choque não eram evitados por eles, mas eu, na minha intuição, fugia de todos confrontos ou os fazia se qualquer segurança. Tentei ser antropofágico, mas essa estratégia não dura muito tempo em ambiente tão intenso e de relações tão orgânicas. Tentava não me mostrar tão incomodado e punha sobre mim as tarefas mais difíceis, embora pudesse assumir coisas mais simples. Essa parte cristã e estoica me fazia ir sempre para longe daquilo que me traria mais conforto e de certo modo tenho essa tendência. Assumir coisas para mim que vão dar trabalho. Um hedonista por um lado e um autocrítico severo.

Vivi seis meses em Forcalquier-Limans onde a vitalidade e a chegada de pessoas era incrível. Fiz parte da equipe que iria fazer a construção de um bar para receber os participantes do Fórum Cívico Europeu. Nem imaginava que usar britadeira me daria tantos calos e tão rapidamente em minhas mãos para quebrar aquela rocha calcária para fazer a fundação desse pequeno quiosque. Eu fazia menos ideia do que significava este fórum.

Toda semana saia um jornal chamado Le Grand Père de Chainais que continha críticas políticas com uma acidez que ia me marcar para sempre em minha escrita. Nessa época de aprendizagem do francês coincide com o momento de aprendizado da escrita do português. Punha minhas angústias em cartas aos meus amigos e parentes. Parecia uma metralhadora, mas muito dessas coisas não faziam sentido para as pessoas e outras eu nem tentava contar.

O fórum aconteceu em agosto, em pleno verão, recebendo políticos, jornalistas engajados, sindicalistas, cientistas políticos e por ai vai. Lembro-me de ver e ouvir o René Dumont, agrônomo terceiro mundista (nem existe mais essa expressão hoje), o ex presidente de Cabo Verde Aristides Pereira, ex- presos políticos de Portugal e Jean Cardonel, padre dominicano muito respeitado na França. Esses eram os que eu entendia a magnitude, contudo, havia muitos outros destacados que eu nem imaginava serem igualmente importantes.

Também ajudamos a levantar uma lona de circo alugada para ocorrer o evento. Guardando as proporções era como o Fórum Social que ocorreria no Brasil anos mais tarde. Essas dinâmicas me deixavam com maior sensação de compromisso político e humano.

Conhecer delegação de pessoas da Polônia, Ucrânia, Mali e de tantas outras nacionalidades eram num mesmo tempo entusiasmante e chocante. Ter dessas pessoas um tipo de contato, de diálogo, de trocas era algo que mexia com meu entendimento de mundo, da diversidade e até da afetividade.

Eu sabia que Longo Mai havia passado por pressões, denúncias, campanhas difamatórias e processos de todo tipo. Também percebi e soube de histórias que a aproximava mais de uma seita política do que de um grupo anarquista. O fato é que qualquer comunidade tem uma crítica externa que também oscila pelo sectarismo. Ainda percebendo essas coisas eu preferia estar ali e sabia que há coisas que não se explicaria facilmente para quem vive fora de um conjunto tão complexo de relações. Longo Mai realmente assustava.

Nesse período que fiquei em Forcalquier/Limans levantamos uma casa de madeira e eu fazia um programa sobre a Bossa Nova na Rádio Livre Zinzine, ainda guardo comigo uma fita com a gravação de um desses programas. Uma madrugada por semana eu fazia uma parte da programação noturna, mas tinha vergonha de falar. Conhecer a dinâmica de uma rádio me estimulava.

Britadeira, marcenaria, cozinha, colheita de feno, panificação, programa de rádio e apicultura, além disso, debates, convívio com estrangeiros, noções do que é a África, a Provença, a riqueza cultural e a mídia banal de um país rico. Lá tive o primeiro contato com a tecnologia Minitel, uma pré-internet da França. Tudo isso regado de muito idealismo e romantismo na minha cabeça puritana.

Decidi após o Fórum Cívico Europeu ir para Ardèche. Inicialmente convidaram para fazer a “transumance” que é um transporte a pé de um rebanho de ovelhas até um local mais quente para passarem o inverno e gestarem os cordeirinhos. Foi cinco dias de comitiva, algo inexplicável de dizer. Andando a pé, em média de 20 km por dia.

Essa experiência magnífica me animou ir para Ardèche, mas não foi de todo uma decisão muito boa. Um núcleo de 4 pessoas e um bebê era muito intenso por um lado e de pouca troca do outro. Todavia, cuidar de ovelhas e ter uma cadela pastora foi uma experiência a parte.

Durante esses pastoreios eu comecei a ler livros enquanto as ovelhas paravam para ruminar. Algumas vezes soprava o vento Mistral, forte, frio, constante e tive a experiência de sentir soprar uns três dias e noites com esse vento sem trégua. Um vento de enlouquecer. Essas condições rústicas eram completadas com o tipo de abrigo. Era uma fazenda antiga que serviu para produção de amêndoas e bicho da seda. Nosso abrigo era uma casa de pedra sem calefação. Colhíamos os galhos secos nos bosques para aquecer a lareira. O fogão era a carvão nos servindo para fazer as refeições e em seu forno colocávamos dois tijolos de cerâmica vitrificada, isso servia para aquecer nossas camas. As roupas de campo eram tão esfregadas nas plantas de tomilho selvagem que até hoje me recordo do aroma que saia do casaco quando o punha no cabide dessa cabana.

Após alguns meses o primeiro cordeiro nasceu e foi contratado um caminhão para transportar as demais matrizes e dessem suas crias na fazenda nas montanhas. Um ciclo anual. Esses seis meses terminaram. De fato, o isolamento e minha imaturidade pesaram. Houve um desentendimento banal e eu acabei indo para outra fazenda.

Fui então para a fazenda que fazia produção de legumes orgânicos para as feiras livres de três cidades, para a comunidade e para exportação. Eu já tinha conhecido esse local e achei o mais caloroso. Ao meu gosto teria ficado lá de cara, mas me meti a ir para uma fazenda mais rigorosa, mais fria e que se mostrou mais difícil de estabelecer relação de afeto.

Em Saint Martin de Crau, a fazenda Longo Mai do Mas de Granier foi um momento de recomeço, de novas amizades e de compreensão melhor da coletividade, forma de organização, de decisão, resolução de conflitos e amizade com os camponeses e militantes étnicos Provençais e outros. Por estar perto de Aix em Provence, Arles, Marseille e outras cidades importantes havia a proximidade com magrebins, povo do marrocos e de outros do lado de lá do mediterrâneo.

Por lá eu ajudei a cultivar muito legumes, também cuidava das abelhas, colhia azeitonas e embalava azeite, atuava na fábrica de conservas e fazia a feira uma vez por semana e vez ou outra ajudávamos camponeses amigos em seus mutirões. De fato esse tempo foi o que mais trabalhei, que mais me diverti e aprendi.

Todas essas experiências de trabalho, organização, capacitação técnica e de convívio foi a experiência particular que tive. Com conflitos para entender o que é um país rico, nosso conceitos de riqueza, de bem estar, de autossuficiência, de politização, de apoio a causas humanitárias e políticas.

Isso ao lado de um sem número de experiências com pessoas que vinha de outras partes inquietas com aquela experiência, um tanto anarquista, autogestionada e que completava 20 anos na época.

Teria muitas coisas para preencher estas histórias. Nesse breve texto omiti muitas das coisas que me chamaram atenção e que me fizeram olhar o compromisso coletivo com outros olhos, menos romântico por um lado e mais realista. Vivi uma utopia em marcha. Com seus defeitos, com suas virtudes e com a visão clara de que aquilo estava acima de qualquer coisa socialista ou comunitária que eu tenha imaginado antes e visto depois em minha vida.

O fato de em Longo Mai eles romperem com a vida de família nuclear e de liberar as mulheres de parte do cotidiano de cuidar dos filhos foi imprescindível para entender como a gestação, o amor protetor pesa sobre a vida política e intelectual das mulheres.

Havia um rodizio para que adultos e não necessariamente os pais cuidassem da alimentação, levar e trazer da escola, assim, pais tinham uma presença com os filhos no início do dia e mais tarde. Isso iria acontecer até os 7 anos de idade. Depois essas crianças iriam ficar numa casa coletiva coordenada por um adulto e quando entrassem na puberdade iriam para outra casa autogestionada na comunidade.

Os jovens que decidissem continuar estudos iam para cidades que ofereciam esses estudos. Mas todos que continuavam na comunidade permaneciam nesse sistema até a idade posterior que equivaleria ao ensino médio do Brasil.

De algum modo essas medidas concretas assustam as pessoas que são de fora. Apartar pais e filhos é muito radical para a maioria de nós. Nada disso quer dizer muita coisa se a pessoa tem em sua idealização da vida ter uma família. Nessas vidas comunitárias, mesmo as que não desejam romper com essa condição, os filhos acabam sendo cuidados por todos.

A relação em que comunitários vivem, dialogam, decidem passos juntos e realizam conduzem a outras questões é uma experiência desafiadora, mas também libertadora. De algum modo as pessoas são liberadas de fazer compras semanais para suas casas, o cotidiano de administração de uma vida familiar deixa de ser atomizado e isso libera tempo para si e para as atividades intelectuais, políticas e de cuidados familiares.

A mulher sob essas condições não paralisa sua vida cultural, profissional, intelectual e política por ser mãe como ocorre em geral. Essa utopia não passava sem seus problemas e por algumas vezes ocorriam reuniões para resolver conflitos e discordâncias na conduta desses cuidados de filhos coletivos. Em algumas situações o apego exagerado ao próprio filho ou aos pais era tanto criticado, quanto era um assunto a ser tratado de um modo que nunca imaginei para minha formação na moral da família que conheço.

Todo esse contexto mexia com meus valores e minha compreensão de comunitarismo. Era ousado, criticado e na minha visão de brasileiro os via com certo frio afetivo. Demorou algum tempo para perceber que no caso de alguns casais isso não se apresentava como um problema, mas uma liberação.

A comparar com Summerhill, escola de internato e democrática da Inglaterra, onde se estabelecia o afastamento dos pais na idade de 7 anos para que eles não fossem vitimados pelo complexo de Édipo que alimentavam os pais. Essa perspectiva era mais forte para os jovens hippies dos anos 1960 e por socialistas mais radicais.

O fato é que quem decide viver essa utopia, questionando a vida patrimonialista, contra a moral da família e contra a total responsabilidade sobre os destinos de seus filhos, se encaixa no libertarismo, socialismo, comunitarismo e no rompimento da sociedade do controle. Mas nem todos tem a coragem de enfrentar essas coisas.

Eram nesse sentido anarquistas, revolucionários e rompiam com o falso moralismo. Isso não os livrava de rompimentos, troca de pares e da tristeza que é perder a companhia. De fato, eles não viviam o amor livre no sentido hedonista e idealistas de alguns anarquistas e socialistas. E obviamente não vivi tanto tempo para entender todas as insatisfações nem as vantagens disso. Muitos integrantes permaneceram e muitos, após anos de convívio partiram.

Alguns filhos partiram, outros após a formação decidiram permanecer e continuar essa conduta e desafio. Esse confronto da vida comum e conservadora, até entre os socialistas fora dessas utopias vivas permanece como um grande contra ponto e conflito.

Ser revolucionário ou libertário em um nível apenas do amor livre, do tipo ninguém é de ninguém, hedonista e permanecendo narcisista, nunca me fez muito acreditar em discursos comunistas e coletivistas.

Sigo ainda com Longo Mai que é fundamental romper opressão da maternidade obrigatória da mulher, num campo que assusta muitas delas, também que é esse apego romântico com os próprios filhos e amor que gera sentimentos individualistas e narcisistas nos filhos. As mães podem ser maternais, podem desejar ter quantos filhos lhes interesse e não almejar uma família planejada pela circunstância econômica de 1 ou 2 filhos no máximo.

Parece-me uma violência a decisão das mulheres esperarem a maternidade até a última data orgânica, somente após de todas as conquistas econômicas e profissionais para um dia poder ter filhos totalmente protegidas, isso não parece algo humano. O problema não é só ter poucos filhos e planejados, mas tê-los somente quando já se resolveu a segurança econômica que é prova do controle da vida dessas pessoas e é uma imposição sobre seus corpos e sentires, não uma escolha dos casais.

No ambiente dos trabalhos e atividades adultas não havia a obrigação de permanecer especialista de nenhuma função. A pessoa podia trabalhar 5 ou mais anos como pastor de ovelhas e depois trabalhar como marceneiro, produtor de legumes, jornalista, músico ou qualquer função. Era estimulado apenas não pular de função a cada inverno.

Não havia uma imposição capitalista que te circunscrevesse ser uma única coisa. Além disso tudo, ninguém trabalhava exclusivamente num setor todos os dias da semana. Assim, além de poder mudar e aprender novas funções, o trabalho escolhido não era levado à exaustão e a uma especialização prepotente.

Claro que mesmo com essa liberdade, as pessoas se especializam em obras, eletricidade, agricultura por uma identidade pessoal e isso era pensado e permitido, sempre com essa situação em que se podia alterar esse curso.

As condições de minha partida em 1993 foram muito complexas para mim, mas havia muitos refugiados de outros países e eu estava mais tempo do que permitido pela legislação e eu não era uma prioridade no momento. Do mesmo modo, ainda que tão favorável àquela experiência, minha compreensão e conduta era escapista e de algum modo isso me fragilizava e tive quer ir embora por uma decisão coletiva que me marcou para toda a vida.

Na época em que vivi em Longo Mai a média de idade era de 30 anos, em 1998, após 5 anos de minha partida eu retornei e passei duas semanas em Mas de Granier em Saint Martin de Crau e as inquietações da aposentadoria se colocavam mais evidentes. O espirito jovem e as ações continuavam, mas as contingências mudaram. As primeiras levas de jovens universitários e graduados já configuravam outros conflitos e necessidades para Longo Mai. Era notável um refluxo  e de pouca renovação próprios de todos os movimentos desse tipo na década de ouro da Social democracia na Europa e sua política neoliberal.

Longo Mai completou 40 anos em 2013. Vivendo essa utopia e tornar o impossível algo possível. Desafiando a vida no sentido que eles elaboraram para si próprios, sem sugerir uma religião, um modelo para os outros e com uma rede de relações de apoio político na França e no exterior que vai além do que eu jamais imaginei e jamais encontrei tão desafiadoramente.

Essas diversidades e outras experiências de formação coletiva existem e se confrontam com o machismo, sexismo, patrimonialismo e atomização do indivíduo e da família. São desafios práticos, ousados e que mexem com valores mais arraigados em nós do que o fetiche de alguns comunistas que não rompem com a culpa cristã.

O respeito que tenho por essas experiências e a compreensão da ousadia ofensiva para os que se assustam com essas ideias estiveram sempre sob minha forma de ver as relações e as ações coletivas. Não idealizo essas alternativas, não mitifico e sei que não são idílicas e ausentes de defeitos.

Optei viver no Brasil, agindo onde é possível o mutualismo e a compreensão dos anseios coletivos. De tal modo que não quero que ninguém copie ou reproduza Longo Mai, tanto menos que isso seja um modelo para a sociedade.

O fato é que tem pessoas que se desafiam mais e não se escondem sob a máscara de uma hipotética e sectária união coletiva, onde vivem pessoas boazinhas e afáveis, mais fetichizadas do que praticável. Não há como aceitar a sociedade injusta e uma das formas de ir contra a opressão é se unir e tentar romper com comportamentos cristalizados que começam no nível doméstico das opressões. Talvez isso que sempre me manteve em apoio crítico ao Movimento dos Sem Terras, uma ousadia combativa na luta pela terra e na conquista da dignidade, mas um pensamento conservador sobre tudo mais que nos oprime. Cada um com suas lutas possíveis, isso que importa!

A cada dia a revolução que busco é a humana e não a política econômica. Devemos permitir que pessoas mais ousadas, mais altruístas e utópicas vivam suas poesias. Desejo eu viver ou apoiar essas experiências. Realmente a frase de uma tirinha de El Roto, cartunista espanhol, apresenta a seguinte ideia: “Se não sabemos para onde vamos porque todos seguem para o mesmo caminho?”

Meu espírito de engajamento é o mesmo de quando era jovem, creio que esses desafios vão além da produção intelectual de direitos humanos. É em nossa vida que as coisas devem mudar e nesse sentido que todas as pessoas que realmente pensam mudar alguma coisa da sociedade, deve pensar como mudam o seu próprio nível de compreensão e práticas da vida antiautoritária, antinacionalista e antipatrimonialista.


Enquanto isso, devemos favorecer todo esforço que se coloca contra o autoritarismo, dos mais miúdos de nossas casas aos da superestrutura. Nada de fatalismo. Utopias miúdas de apoiar pessoas são melhores do que o pessimismo e desistência de lutar para uma condição humana digna e profícua. Isso nunca termina, sempre devemos desejar o melhor do melhor para que a dignidade global seja respeitada.