No início da quarentena eu pensei que morreria. Ainda sei que posso morrer.
Temia gente próxima falecer e algumas faleceram. O discurso de arreganhamento do
demônio me deu mais certeza do fim. Só caiu a ficha que eu poderia morrer,
quando tive que ir na UPA de Cruz das Armas e no salão frontal de portas de
vidro aquele espaço fazia a vez uma vitrine macabra da morte expondo dois
pacientes todos envelopados de branco e se poderia bem afixar uma placa: “Nós
que aqui estamos esperando por vós!” Eu fui morrendo na quarentena. Morri para
alguns falsos valores.
Despedi-me de mim algumas vezes. Estava dentro do
Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Por Direitos repleto de dilemas de
higiene e cuidados, pois estávamos visitando comunidades vulneráveis. Descuidos
com uso de máscaras, EPI’s mal utilizados, não utilizados ou inadequados e
desinfeccionamentos precários.
Passeei no centro de João Pessoa, num dia de
semana, em hora que seria de pleno pico e me lembrava da imagem do Papa
caminhando em Roma só. A cidade era um luto ou pré-luto evaziada de vida, de
esperança. A rua era um esquife gigante.
Sublimei todos esses aspectos
horripilantes e decidi que não queria estar em outro lugar que não fosse perto
daquelas pessoas que eu tentava cuidar nas franjas da Grande João Pessoa. Eu
cuidava de mim. Estava e estou entendendo a despedida do mundo. No final, sempre
estamos despedindo da vida, só que a pandemia e o demônio que nos atormenta
desde 2015 deram mais sabor de fim inexorável e inevitável.
Como saber que antes
de você morrer narciseamente, morre o outro lado não egoico. Eis-me cá vivo,
sempre morrendo, sempre sendo otimista e sempre morto dentro de mim. As
consequências de ser um fantasma com corpo é que você pode agir como vivo. Só
que as regras caíram.
Estava em em março de 2020, dia sim dia não, indo nadar
nas águas da praia do Bessa. Um dia uma caravela queimou minhas pernas e não
morri. Um dia vi seres estranhos, era a corda de uma ancora. Um dia ouvi uma
revoada de pássaros e antes de meu cu apertar cortando vergalhão era um cardume
que saltava. Eu tenho muito medo dos seres marinhos desconhecidos.
Enquanto eu
morria afetivamente, politicamente e psiquicamente, faleciam milhares de pessoas
e não era somente possível a minha morte como era também provável e ainda é.
Minhas decisões não estão muito pautadas nesse futuro e nas minhas hipocrisias.
Tento viver até meus erros de verdade. Hoje acordei e falei, já cometi erros e
falhas tão grandes que poderia fazer uma classificação de nível 1 a 10, sendo 1
o grau de pior arrependimento. Nessas reflexões atoladas nesse poço de mim
mesmo, ensimesmado, tal classificação só serviria para meu bom exercício de
centrar em mim mesmo.
No final dessa reflexão surge este texto. Seguramente,
para muitos que se foram sem se despedirem e na angustia de obter ar, falecendo
de asfixia ou de outra moléstia do corpo afetada por esse vírus, eu declaro que
todos nós morremos. Carrego a carcaça sã como todos e todas vivas, mas a
insanidade da ausência completa de empatia, não somente deste governo, de toda
ordem capitalista que é incapaz de acudir a humanidade, inclusive na garantia de
funerais dignos, ainda se afeta.
Minha carcaça ainda se revolta. Nossa morte
existencial que começa quando nascemos se encontrou com a morte conjectural.
Resulta que nada é tão ruim ou bom quanto imaginamos. Estarei vivo e morto para
garantia que meus erros sejam devidamente cometidos e para garantir que alguns
acertos comprovem que fui muito esmerado em não ser o melhor Antônio possível e
nem o melhor Antonio de mim.
A condição dessa morte me joga direto para o
despojamento, para o minimalismo e para o desacumulo. Cresceu a intolerância a
quem tem prisão de ventre mental, que param dentro de si achando que terão outra
vida e outro momento para viver.
Minha persistência em viver é tão gigante
quanto meu esmero em estar morto. Por isso, as pequenas injunções políticas, os
limites “do pode não pode”, as decisões do idiota se aperfeiçoar em ser mais
idiota e da pessoa acreditar que é invulnerável me faz por um lado rir e por
outro chorar, já que o sentido da autoproteção nem sempre é o outro, talvez
nunca seja.
Uma amiga me pediu para eu me cuidar! Descuidarei-me como
sempre!Hoje irei ao mar do Bessa temer monstros marinhos!